Ensaio fugaz
para um desatino mnemônico
Como você sabe meus dias continuam iguais. Acordo cedo
e acendo o cigarro. É a primeira epifania. A sagração de todas as mortes que
podem advir daquela fumaça. Mas é assim mesmo, a morte está sempre nos
calcanhares, porque não traga-la para o âmago do pulmão.
Dito isso, já estou me preparando para ir ao trabalho.
O honesto trabalho que todos admiram, o serviçal do sistema, o aprumado senhor
do capital que nos abençoa. No trânsito discuto, xingo, blasfemo: tudo isso com
os vidros fechados. Porque aqui dentro um tumulto perambula pelas veias.
De todas as coisas que você sabe, eu nunca te escondi
nada, nadinha. Algumas são simples devaneios, de fato não existem. O problema é
que há muito não consigo discernir entre as coisas de fato, entre o ato e o
sobressalto. Brincadeira, amor, eu tinha que aproveitar umas rimas nesta
epístola para alegrar o enredo. Ou seria desenredo.
Como você sabe eu não consigo contar nada de forma
linear. Tenho que por uns adereços, uns penduricalhos para dar ritmo. Outro dia
li um poema de Rimbaud em que ele dizia “eu só escrevo silêncios’”. Sabe quando
uma coisa mora dentro da gente, fixa residência nas retinas. Assim fiquei eu
com o verso do poeta.
Assim como fico com todos os silêncios que me habitam
e todos aqueles outros que ainda fazem eco nas retinas. Fico pensando se a
morada do silêncio seria a retina. Ou será que ele perambula pelos ossos quando
a gente caminha, se excita quando a gente faz sexo, fica triste quando a gente
chora. O silêncio e os seus sentidos. Acho que vou compor um ensaio: “a gênese
do silêncio sob a ótica de um entardecer”.
O que tu achas, amor? Como você sabe entardece rápido
por aqui, do lado de cá. É aquela hora em que os girassóis desfilam seus
alamares incendiando o horizonte. Tu lembras de quantos poemas eu fiz para ti
sobre os girassóis, e do teu espanto quando me referi ao helianto (helianthus
annuus), e tu não sabias que um outro nome designava esta planta caracterizada
por possuir grandes inflorescências do
tipo capítulo,
cujo caule pode atingir até 3
metros de altura e apresenta filotaxia do
tipo oposta cruzada, notável por "olhar" para o Sol, comportamento vegetal
conhecido como heliotropismo.
Tanta coisa
para nada, não é amor. O breve conhecimento sobre o efêmero. Sei que tu
percebes as coisas com eu, por isso te escrevo. Como se fosses a destinatária
dos meus anelos ( eu ia escrever sonho, amor, mas anelo carrega uma simbologia
maior).
Sabe aquele poema que tanto gostas do Neruda: “Te amo
sem saber como, nem quando, nem onde, assim te amo porque não sei amar de
outra maneira”. Encontrei-o numa edição antiga em um sebo, tem uns riscos de
caneta em alguns poemas, mas mesmo assim comprei-o. Pensei em enviar junto com
esta carta que estás lendo agora enquanto escrevo, porém desisti. Quero te
entregar pessoalmente, sabe, sentir o livro e a textura da tua pele juntos.
Outra coisa: aquele filme “Os contos de Nova York”,
consegui uma cópia para assistirmos. É tão belo, amor, com aquela canção do
Procul Harum: A Whiter Shade of
Pale. Tenho tantas coisas para fazermos juntos que não cabe numa existência.
Por isso a urgência das palavras.
E por falar em urgência, amor, tenho que finalizar. O
telefone está tocando sem parar. Como você sabe, ainda não consegui me
desvencilhar de muitas coisas. E elas rugem apressadas querendo companhia.
Aquele tumulto, tu sabes, se enrosca lentamente: inexprimível.
A ti só aspiro em augusto retiro.
p.s.
este final é Rimbaud (esqueci de por as aspas)
p.s.2
é um trecho da Canção da Torre Mais Alta