Missivas à espera de remetente
Carta 1
O amor é esse bicho doido que você plantou dentro de
mim. Eu disse que não queria, que não podia, mas foi tanta insistência que
acabei sucumbindo. Agora estou aqui com poemas por toda a casa, o som no volume
máximo ouvindo Marisa Monte, com todas essas esquisitices de um ser apaixonado.
Não, não me diga que tudo isso passa. Não passa. Olha o que eu escrevi:
Essa coisa que aconteceu entre a gente
Incontinente: acho que foi ist(m)o
Vou ver as ruas, quem sabe o ar poluído me recupere
de tuas purezas, dessa leveza que imantas nos gestos e nas palavras. Por
enquanto hoje é sábado, neste calendário corroído de pretéritos. Te beijo com
esta ânsia de tempestades.
Assis Freitas
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Imensa Sorte
Lágrimas, uma sopa de lágrimas, ela prepara sem
descascar uma cebola. Devagar, colher de pau girando a água na panela, vai
engrossando o caldo. Lembranças, remorsos, impotência. Os três se misturando em
quantidades impossíveis de mensurar. De vez em quando, uma pitada de
incompreensão outra de desamparo são lançadas como quem lança um monólito no
infinito e se surpreende diante do fogo que chama e queima dedos descuidados.
Dedos finos, de unhas roídas, raladas pela ansiedade que zune nos ouvidos e
abafa os apitos da chaleira e dos trens da infância e também o último silvo do
guarda noturno em sua ronda incompatível com as nuances da cidade de vivos,
mortos e indefinidos, espécie de temperos insonsos e incapazes de fazer
diferença seja em um prato quente ou frio, na sobremesa ou no cafezinho servido
puro, forte, amargo, e servido com ojeriza profunda aos paraísos artificiais do
aspartame ou do açúcar que caria a alma e cobre de gordura a cozinha, a xícara
e a verdade de que seria uma sorte se a sopa fosse de pedra.
Helena Terra